quarta-feira, 29 de abril de 2009

Do que somos feitos

Os poetas escrevem. Os filósofos pensam. Os médicos tentam explicar a coisa cientificamente. Mas, por muito que misturem o ambiente com a genética, que puxem pela cabeça, que abusem das palavras, nunca serão capazes de reduzir o que cada ser humano é a uma simples fórmula, a uma teoria ou a um poema. Muito menos se reduzirá a um texto escrito por mim, mas aqui vai, que é esta a disposição do dia.
Se há algo que faz de nós o que somos, são as nossas memórias. O que vivemos, o que fizemos, o que nos deram e, principalmente, as pessoas que nos acompanharam em todas ou em cada uma das etapas. Tudo isto está na nossa cabeça, muito ou pouco enterrado em camadas sucessivas de problemas, acontecimentos, obrigações, que ocupam o nosso dia-a-dia. E, no meio das nossas caóticas vidas, por vezes, parece-nos que nos esquecemos de tudo. E queremos lembrarmo-nos, queremos recordar, mas tudo o que nos vem à cabeça é o presente. Para isto são precisas as outras pessoas. As fotos. Os diários. Os filmes. As músicas. E, mais modernamente, os blogs.
Uma colega blogger tem no cabeçalho do blog que escreve para o seu filho que espera que ele não lhe leve a mal a exposição. Eu tenho a certeza que não vai levar. O que ela descreve são as pequenas coisas do quotidiano que vão escapar, inexoravelmente, para o fundo do baú que é a nossa memória. Coisas pequenas, mas não insignificantes, e que tão bem nos sabe recordar. Sabe bem conversar, ou escrever, sobre as pessoas que nos importam, e saber que na mente do outro há uma versão ligeiramente diferente do que há na nossa. É tão bom olhar para fotos ou filmes caseiros de outras épocas e ver a agir, a falar, a amar-nos pessoas que o tempo já nos roubou - seja da forma mais radical, a morte, seja de forma gradual, o envelhecimento. É recordar o dar o dedo em vez da mão (que nós já somos crescidos), o chamar "cão" a todos os animais (até a um pobre passarinho diminuto), a fila de cabeças a passar que mal ultrapassava a altura da mesa da cozinha (que hoje sentem o ar a mais de 1,70m de altura), o acreditar que um helicóptero nos vem buscar para nos levar à escola, a birra que fizémos para que nos oferecessem um triciclo, os filmes de cowboys que vimos no cinema do bairro na companhia do avô, os bolos que a mãe nos levava a comer ao Domingo, as Barbies que os padrinhos nos traziam do Brasil, os jogos com que nos entretinham nas intermináveis bichas da Ponte 25 de Abril.
Muitos destes pequenos acontecimentos estão na nossa memória. No entanto, não estariam se não os revivessemos. A memória é muito frágil e não consegue competir com as exigências do dia-a-dia. A partilha faz com que a nossa vida tenha contornos, porque aquilo que para uns são memórias distantes da infância, para outros são memórias muito nítidas da primeira vez que foram pais. A ideia que temos de alguém, sem muitas certezas, é corroborada por outra pessoa que connosco a conheceu. As sensações que um determinado acontecimento nos transmite, vistas de outro ângulo. Tudo isto somos nós e são os nossos. A paciência, a amizade, o companheirismo, o amor que nos dedicam, ao longo da vida, as pessoas que connosco a vivem. É para isto que estamos nesta terra, sem a mais pequena dúvida.

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